Caracu foi formado após cruzamento de raças vindas das naus portuguesas
Um animal dócil, guloso e com alta libido. Essa é a descrição resumida do caracu, raça de gado taurino forjada no Brasil e cuja história remonta à da própria pecuária nacional. “Ele é um sobrevivente de tudo que o país tem de desafio para criar gado: clima, topografia, alimentação, manejo e todo tipo de parasitas. Ele sobreviveu a isso tudo”, resume o presidente da Associação Brasileira de Criadores de Caracu (ABC Caracu), Renato Visconti Filho.
Considerado uma raça nativa, o caracu não é exatamente originário do Brasil, segundo explica o pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos Alexandre Floriani. “Antes da vinda dos colonizadores, não existiam bovinos no Brasil. Eles vieram por volta de 1500 e eram principalmente animais de raças de origem ibérica. Se espalharam no território nacional, onde, por seleção natural, passaram a ter características próprias.”
Floriani conta que o cruzamento aleatório das raças ibéricas, mais destacadamente gado minhoto e alentejano, e outras trazidas para o Brasil na época das caravelas, resultou na formação de pelo menos 12 raças de gado consideradas nativas, mas apenas quatro ainda possuem rebanho viável no país: o caracu, o curraleiro, o crioulo lageano e o pantaneiro, estes dois últimos com um rebanho abaixo de 1.500 animais e, portanto, considerados em risco de extinção.
No caso do caracu, o rebanho registrado pela ABC Caracu era de 13.400 fêmeas e 11.700 machos em 2024, totalizando mais de 25.000 cabeças. Ela e o curraleiro, com rebanho estimado em 15.000 animais, são as únicas raças nativas que não correm risco de extinção, mas ainda com número pequeno de indivíduos.
“Isso não dá um almoço em São Paulo. A cidade sozinha consome quase 45.000 carcaças de gado por dia. Então, em um almoço, você acaba com o caracu do Brasil”, ilustra o presidente da ABC Caracu.
Ele lembra que, até a década de 1960, o caracu representava o segundo maior rebanho do país, mas perdeu espaço após sucessivos programas de importação de raças exóticas.
A mais destacada delas, o nelore, é uma raça zebuína e hoje representa mais de 80% do gado nacional, estimado em 234,4 milhões de cabeças, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A conta inclui ainda taurinos criados na Região Sul do país, como o angus, o hereford e o simental.
- Em 1534, chegam à Capitania de São Vicente, atual Estado de São Paulo, os primeiros animais vindos da Europa. Raças como minhoto e alentejo, da Península Ibérica, foram os principais.
- O cruzamento desses animais de forma aleatória no Brasil é que formou um grupo racial de taurinos adaptados ao clima tropical.
- Estima-se que cerca de 12 raças se formaram no Brasil desde 1500, mas apenas quatro ainda estão presentes no rebanho nacional: o caracu, o curraleiro, o pantaneiro e o crioulo lageano.
- Em 1916, é criada a Associação Brasileira dos Criadores de Caracu (ABC Caracu).
- Até a década de 1960, o caracu representava o segundo maior rebanho do Brasil, atrás apenas do nelore;
- Em 1980, o Instituto de Zootecnia de São Paulo inicia seu trabalho de seleção e melhoramento genético do caracu mirando o ganho de peso;
- Entre 1995 e 2000, a ABC Caracu passa a coordenar o trabalho de melhoramento e resgate do caracu a partir do cruzamento com raças morfologicamente parecidas;
- Em 2024, o rebanho de caracu foi estimado em cerca de 25.000 cabeças
“A raça perdeu espaço, não teve mídia, não teve divulgação. Nós deixamos entrar no Brasil uma série de raças que nem precisavam ter entrado, porque o caracu supre com sobra o que essas outras vieram fazer aqui”, lamenta Renato. Dentre as razões para as raças nativas taurinas terem sido preteridas ao longo dos anos, Floriani menciona o processo de heterose gerado no cruzamento das raças nativas com as raças exóticas.
A heterose é um fenômeno genético no qual os filhos apresentam melhor desempenho zootécnico do que a média dos pais, sendo mais pronunciada quanto mais geneticamente diferentes forem as raças ou linhagens envolvidas no cruzamento. “A produção desses animais foi muito boa, mas, por falta de conhecimento, na época, esse benefício foi atribuído aos animais que vieram de outros países”, relata o pesquisador.
Hoje com um rebanho de 250 animais em Mangueirinha, no Paraná, a família se dedica a vender reprodutores e matrizes de corte. Seus principais clientes são pecuaristas do Norte do país, que usam a raça para conferir maior qualidade de carne a rebanhos de raça zebuína não submetidos a inseminação artificial em tempo fixo, quando geralmente se usa genética de raças taurinas exóticas.
Por ser um taurino nativo, o caracu consegue exercer um bom desempenho na monta natural mesmo sob condições extremas, chegando a cobrir lotes de até 50 fêmeas com até 90% de taxa de prenhez. “Ele é um animal extremamente funcional para a cobertura a campo, que ainda é a grande maioria do manejo das fazendas com gado criado de forma extensiva no país”, destaca Renato Visconti.
De acordo com dados da Associação Brasileira de Inseminação Artificial (Asbia), apenas 25% das fêmeas são inseminadas no Brasil.
Segundo o presidente da ABC Caracu, a venda de touros reprodutores tem sido o principal mercado no caracu após o resgate vivenciado pela raça no início da década de 1990. Até então, o rebanho nacional era limitado, mantido por criadores tradicionais com pouco ou nenhum trabalho de melhoramento genético.
“Esses criadores estavam muito preocupados com a qualidade morfológica em termos de padrão racial, mas esquecendo do que o caracu veio fazer, que é a produção de carne. Tínhamos um animal muito bonito, mas que não era funcional. De que adianta?”, questiona o pecuarista.
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Entre 1995 e 2000, a associação passou a coordenar o trabalho de melhoramento e resgate do caracu a partir do cruzamento com raças morfologicamente parecidas, mas com genes fortes para as características desejadas para produção de carne: traseiro maior, menor porte e carcaça mais convexa – quando as costas do animal apresentam um perfil arredondado – com uma boa cobertura de carne e pouca depressão na região do dorso, resultando em maior rendimento e melhor acabamento de gordura.
O ganho de peso também ficou mais rápido, e os animais que antes precisavam de quatro anos para chegarem ao ponto de abate alcançam hoje o mesmo resultado em 22 meses de vida. “A partir daí, começamos a dar um novo visual, vamos dizer assim, à carcaça do caracu”, comenta Renato.
Dentre as instituições responsáveis pelos avanços zootécnicos das últimas quatro décadas, ele destaca a Embrapa Gado de Corte e o Instituto de Zootecnia de São Paulo (IZ).
Segundo o produtor, cerca de metade dos touros caracu mantidos em centrais de inseminação no Brasil foi produzida pelo IZ. O órgão, ligado à Secretaria de Agricultura de São Paulo, pesquisa o caracu desde o final da década de 1970 e mantém um programa de melhoramento focado em ganho de peso.
Ao atingirem um ano de idade, os animais mantidos pelo instituto são pesados e aqueles que apresentam o maior ganho de peso são selecionados para novos cruzamentos. Quatro décadas depois, eles têm chegado aos 24 meses com cerca de 5,7 arrobas acima do que era registrado no início do programa.
Em Mato Grosso, os resultados com o uso do caracu no cruzamento com nelore ainda em 1987 inspiraram o criador José Neves Ferreira a iniciar o próprio programa de melhoramento focado em produção de carne e rentabilidade de carcaça. “Comprei caracu do Brasil inteiro: Paraná, Minas Gerais, São Paulo. Onde tinha rebanho com animais de qualidade, eu ia até lá e comprava.”
Hoje com 3.000 vacas e cerca de 60 touros reprodutores, ele cria apenas caracu e mantém um sistema de produção com dupla finalidade. Dos animais machos, seleciona touros que são vendidos aos 24 meses, e usa as fêmeas, aos sete anos, para produzir carne com marca própria que é vendida na capital do Estado, Cuiabá, e em cidades próximas como Diamantino, Nova Mutum, Lucas do Rio Verde, Sorriso e Sinop.
A idade de abate assusta quando consideramos que o objetivo da maior parte dos programas de melhoramento é abater animais cada vez mais cedo, mas Ferreira sabe o que está fazendo. O objetivo dele é qualidade de carne com maciez, sabor e suculência, algo que, em taurinos, só aumenta com a idade. “A necessidade do abate precoce hoje no Brasil é porque nós temos um rebanho majoritariamente de zebu. E o zebu, quanto mais velho ele fica, mais dura é a carne”, descreve o pecuarista.
A perspectiva é repetir os resultados do caracu até 2030. “Eu já tenho a experiência de erro e acerto com o caracu, e já existem técnicas mais modernas que permitem encurtar gerações. Então acredito que vou chegar ao meu objetivo mais rápido”, pontua o produtor.